O dia mal havia clareado quando nos levantávamos. Minha mãe
chamava-me à porta do quarto, com a voz firme, contudo, frequentemente
era necessário que ela retornasse e me chamasse de forma ainda mais
enérgica, visto ser comum que eu voltasse a dormir inebriado pelo cálido
cheiro do sono e o peso da coberta, que deixava fiapos presos em meus
cabelos.
Eu sentava à cama, coçava os olhos e a cabeça, e finalmente me
levantava, com o rosto inchado de tanto dormir, caminhando a passos
lentos em direção ao banheiro. A essa altura eu já podia sentir o cheiro
do café forte que meu pai preparava – moído com gravetos e milho, mas
que eu achava uma delícia – enquanto minha mãe arrumava seu almoço no
vasilhame de alumínio, além do meu lanche.
Havia também um radinho com o dial mal sintonizado em uma
emissora AM, tocando músicas bregas, todas exaltando a paixão ou
sofrendo o abandono de um grande amor. As músicas, o cheiro do café, e o
sono eram sempre os mesmos, todos os dias.
Café tomado, marmita pronta, rádio desligado, saíamos os três:
mamãe sempre com vestidos comportados, meu pai de camisa de mangas
curtas, bermuda e chinelos surrados, além do boné de time de basquete
americano, também bastante maltratado. Eu seguia com o uniforme escolar:
camisa de malha, bermuda azul ferrete e tênis preto apertado, com
solado de borracha e grandes cadarços, que eram amarrados dando-se
voltas nas canelas.
Na metade do caminho, meu velho se despedia e pegava um atalho
para a construção em que trabalhava, um condomínio na parte mais alta do
meu bairro, e que jamais chegou a ser concluído. Eu e mamãe seguíamos
até a escola, e já bem próximos, a senhora me enchia de recomendações:
deveria obedecer a tia, prestar atenção na aula e tratar bem meus
coleguinhas; aos portões do prédio, ela beijava minha testa e me dava
sua bênção, segurando minha cabeça com ambas as mãos, macias e frias. Em
seguida, entregava minha mochila, desejava-me boa aula e permanecia ali
até que eu dobrasse o corredor. Depois de cinco passos eu sempre olhava
para trás, e ela sempre estava lá, sorrindo e acenando, e eu continuava
seguindo também sorridente. E confiante.
Tia Judite nos cumprimentava assim que entrávamos na sala, era
uma negra opulenta de voz gravíssima, teria por volta de 40 anos, à
época. Sua autoridade era inquestionável, e qualquer ameaça à
tranquilidade de suas aulas era rapidamente debelada por seus gritos. Às
vezes, bastava um olhar seu para que voltássemos a nos comportar nas
carteiras enfileiradas, copiando o dever do quadro de giz, ou anotando o
maldito ditado, meu algoz.
Ela recitava as palavras como se as desenhasse no ar, com
precisão quase milimétrica, e nos chamava um por um para corrigir o
exercício. Quando os alunos da minha fileira começavam a ser convocados,
eu já começava a suar frio.
– Casa, Veio, Bola, Vaca, Dado, Gula... – lia em voz alta Tia
Judite. Olhou-me com o semblante sério e descarregou. – Mas será
possível? Veio? Vaca? Eu ditei “Feio” e “Faca”. Você deve ter algum
problema, meu filho, ninguém aqui confunde mais isso.
– Desculpa, tia... – disse envergonhado e com medo do que
pensaria minha mãe, que era muito rígida com os estudos. “Só há duas
formas honestas de se tornar rico nesta vida: ou nascemos ricos, ou
estudamos”, era o que ela dizia.
– Não precisa se desculpar, meu filho... – retrucou ainda muito
séria. – Eu vou passar umas palavras para você copiar em casa, e amanhã
farei um ditado com essas palavras, tudo bem? – concluiu sorrindo, mas
seus olhos não acompanhavam o movimento dos lábios. Seu olhar não
sorria, nunca.
– Tudo bem... – respondi cabisbaixo. Ela afagou minha cabeça, de
uma forma um tanto grosseira e eu segui para minha carteira. No fim da
aula ela me deu a tal folha com as terríveis palavras: Vela, Feijão,
Foto, Vaca, e Velha. Encontrei minha mãe na saída, ainda com a tarefa
nas mãos.
– O que é isso? – perguntou segurando minha mochila e guardando o papel.
– Dever de casa... – respondi prontamente, sem fazer menção, é
claro, ao ditado e ao “ninguém aqui confunde mais isso”. – Onde estamos
indo? – perguntei ao perceber que caminhávamos por uma rota diferente.
– Hoje é sua consulta com o dentista, lembra-se? – respondeu
mamãe, carinhosamente, de mãos dadas comigo e carregando minha mochila.
Tomamos um ônibus e seguimos até o centro da cidade, mamãe teve
que gritar para que o motorista parasse o coletivo no local correto. Ela
conduzia-me até a saída, por entre as senhoras gordas e os homens
inquietos que sempre ficavam atrás das mulheres mais jovens; algumas
cotoveladas eram inevitáveis, mas a maciez das senhoras grandes
compensava.
Caminhávamos cerca de 10 minutos até o posto de saúde onde eu era
atendido. Desde muito pequeno eu tinha cáries e dentistas não eram
nenhuma novidade para mim. No caminho, passamos em frente a uma igreja,
onde um mendigo roto estava sentado na calçada, com as pernas tortas, e
as mãos encardidas estendidas pedindo dinheiro. Os cabelos e barbas
grisalhos emolduravam o rosto carrancudo e marcado de rugas. Nossos
olhares se cruzaram por segundos e minha mãe me puxou num solavanco para
que eu me afastasse do homem, fazendo-me soltar um breve gemido.
– Por que aquele homem é assim?
– Porque ele não estudou, meu filho, porque ele não estudou... –
afirmou categoricamente. Virei-me para trás, e nossos olhares se
cruzaram uma segunda vez. Outro solavanco, outro gemido.
Aquelas imagens ficaram gravadas em minha retina para sempre, e
naquela mesma noite fui acordado em plena madrugada pelos olhos do
mendigo. Meu pai veio socorrer-me, apenas de cueca, trouxe-me um copo de
água e permaneceu comigo até que eu me acalmasse, deixando a luz acesa
ao sair.
– Vela, Feijão, Voto, Faca, Velha... – leu em voz alta Tia
Judite, balançando a cabeça negativamente, no dia seguinte. Encarou-me
em silêncio por alguns instantes, e então, eu percebi porque os olhos do
mendigo me incomodaram tanto. O olhar era o mesmo da minha professora,
olhos que jamais sorriam.
– Vou te dar outras palavras para casa e amanhã repetimos, tudo bem? – perguntou de forma carinhosa, eu anuí com a cabeça.
Refizemos o exercício por dias, eu treinava cada conjunto de
palavras com cada vez maior afinco, aprender aquele ditado havia se
tornado uma obsessão, mas eu sempre assistia meu esforço ir por água
abaixo, quando confundia os malditos “F” e “V”. Com o tempo, meus pais
começavam a se preocupar comigo, eu chorava por qualquer coisa, e
acordava sobressaltado à noite. Contudo, jamais revelei o motivo de
minha crescente perturbação.
Até que um dia, ao final da aula, quando eu já havia perdido
minhas esperanças – eu devia ter algum problema mesmo – Tia Judite
esperou que todos fossem embora e realizou outro ditado comigo. Talvez
fosse o último. Embora desinteressado, respondi o teste obedientemente.
Entreguei a folha para a professora, que leu as palavras em silêncio,
movimentando os lábios mudos. Ao terminar, pousou o papel sobre a mesa,
sorriu discretamente e volveu o olhar cheio de lágrimas para mim.
– Você conseguiu, meu filho, você conseguiu! – disse me abraçando
e eu não pude respondê-la. Apenas chorei, por longos minutos, com a
cabeça apoiada em seu colo macio.
Naquele momento todo o peso do mundo saía de minhas costas.
Quando perguntei à minha mãe sobre o mendigo, pouco me importava se ele
era sujo ou maltrapilho, eu queria mesmo era saber por que ele era tão
triste. A tristeza estava lá, eu vi, estava nos olhos do mendigo, estava
o tempo todo nos olhos da minha professora. O olhar é a vitrine da
alma, e exibe em que está repleto o coração. A minha angústia, afinal,
era a possibilidade de me tornar infeliz como ele. E se o destino dos
que não estudam era ser tão triste quanto aquele mendigo, eu precisava
aprender logo o ditado, eu não queria ser daquele jeito. Ninguém quer.
Nem eu, ou o mendigo. Nem Tia Judite.
George dos Santos Pacheco
*Publicado originalmente na Revista Êxito Rio.
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