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9 de dezembro de 2014

Os olhos que jamais sorriam

 

O dia mal havia clareado quando nos levantávamos. Minha mãe chamava-me à porta do quarto, com a voz firme, contudo, frequentemente era necessário que ela retornasse e me chamasse de forma ainda mais enérgica, visto ser comum que eu voltasse a dormir inebriado pelo cálido cheiro do sono e o peso da coberta, que deixava fiapos presos em meus cabelos. 

Eu sentava à cama, coçava os olhos e a cabeça, e finalmente me levantava, com o rosto inchado de tanto dormir, caminhando a passos lentos em direção ao banheiro. A essa altura eu já podia sentir o cheiro do café forte que meu pai preparava – moído com gravetos e milho, mas que eu achava uma delícia – enquanto minha mãe arrumava seu almoço no vasilhame de alumínio, além do meu lanche. 

Havia também um radinho com o dial mal sintonizado em uma emissora AM, tocando músicas bregas, todas exaltando a paixão ou sofrendo o abandono de um grande amor. As músicas, o cheiro do café, e o sono eram sempre os mesmos, todos os dias. 

Café tomado, marmita pronta, rádio desligado, saíamos os três: mamãe sempre com vestidos comportados, meu pai de camisa de mangas curtas, bermuda e chinelos surrados, além do boné de time de basquete americano, também bastante maltratado. Eu seguia com o uniforme escolar: camisa de malha, bermuda azul ferrete e tênis preto apertado, com solado de borracha e grandes cadarços, que eram amarrados dando-se voltas nas canelas. 

Na metade do caminho, meu velho se despedia e pegava um atalho para a construção em que trabalhava, um condomínio na parte mais alta do meu bairro, e que jamais chegou a ser concluído. Eu e mamãe seguíamos até a escola, e já bem próximos, a senhora me enchia de recomendações: deveria obedecer a tia, prestar atenção na aula e tratar bem meus coleguinhas; aos portões do prédio, ela beijava minha testa e me dava sua bênção, segurando minha cabeça com ambas as mãos, macias e frias. Em seguida, entregava minha mochila, desejava-me boa aula e permanecia ali até que eu dobrasse o corredor. Depois de cinco passos eu sempre olhava para trás, e ela sempre estava lá, sorrindo e acenando, e eu continuava seguindo também sorridente. E confiante. 

Tia Judite nos cumprimentava assim que entrávamos na sala, era uma negra opulenta de voz gravíssima, teria por volta de 40 anos, à época. Sua autoridade era inquestionável, e qualquer ameaça à tranquilidade de suas aulas era rapidamente debelada por seus gritos. Às vezes, bastava um olhar seu para que voltássemos a nos comportar nas carteiras enfileiradas, copiando o dever do quadro de giz, ou anotando o maldito ditado, meu algoz. 

Ela recitava as palavras como se as desenhasse no ar, com precisão quase milimétrica, e nos chamava um por um para corrigir o exercício. Quando os alunos da minha fileira começavam a ser convocados, eu já começava a suar frio. 

– Casa, Veio, Bola, Vaca, Dado, Gula... – lia em voz alta Tia Judite. Olhou-me com o semblante sério e descarregou. – Mas será possível? Veio? Vaca? Eu ditei “Feio” e “Faca”. Você deve ter algum problema, meu filho, ninguém aqui confunde mais isso. 

– Desculpa, tia... – disse envergonhado e com medo do que pensaria minha mãe, que era muito rígida com os estudos. “Só há duas formas honestas de se tornar rico nesta vida: ou nascemos ricos, ou estudamos”, era o que ela dizia. 

– Não precisa se desculpar, meu filho... – retrucou ainda muito séria. – Eu vou passar umas palavras para você copiar em casa, e amanhã farei um ditado com essas palavras, tudo bem? – concluiu sorrindo, mas seus olhos não acompanhavam o movimento dos lábios. Seu olhar não sorria, nunca. 

– Tudo bem... – respondi cabisbaixo. Ela afagou minha cabeça, de uma forma um tanto grosseira e eu segui para minha carteira. No fim da aula ela me deu a tal folha com as terríveis palavras: Vela, Feijão, Foto, Vaca, e Velha. Encontrei minha mãe na saída, ainda com a tarefa nas mãos. 

– O que é isso? – perguntou segurando minha mochila e guardando o papel.
– Dever de casa... – respondi prontamente, sem fazer menção, é claro, ao ditado e ao “ninguém aqui confunde mais isso”. – Onde estamos indo? – perguntei ao perceber que caminhávamos por uma rota diferente. 

– Hoje é sua consulta com o dentista, lembra-se? – respondeu mamãe, carinhosamente, de mãos dadas comigo e carregando minha mochila. 

Tomamos um ônibus e seguimos até o centro da cidade, mamãe teve que gritar para que o motorista parasse o coletivo no local correto. Ela conduzia-me até a saída, por entre as senhoras gordas e os homens inquietos que sempre ficavam atrás das mulheres mais jovens; algumas cotoveladas eram inevitáveis, mas a maciez das senhoras grandes compensava. 

Caminhávamos cerca de 10 minutos até o posto de saúde onde eu era atendido. Desde muito pequeno eu tinha cáries e dentistas não eram nenhuma novidade para mim. No caminho, passamos em frente a uma igreja, onde um mendigo roto estava sentado na calçada, com as pernas tortas, e as mãos encardidas estendidas pedindo dinheiro. Os cabelos e barbas grisalhos emolduravam o rosto carrancudo e marcado de rugas. Nossos olhares se cruzaram por segundos e minha mãe me puxou num solavanco para que eu me afastasse do homem, fazendo-me soltar um breve gemido. 

– Por que aquele homem é assim? 

– Porque ele não estudou, meu filho, porque ele não estudou... – afirmou categoricamente. Virei-me para trás, e nossos olhares se cruzaram uma segunda vez. Outro solavanco, outro gemido. 

Aquelas imagens ficaram gravadas em minha retina para sempre, e naquela mesma noite fui acordado em plena madrugada pelos olhos do mendigo. Meu pai veio socorrer-me, apenas de cueca, trouxe-me um copo de água e permaneceu comigo até que eu me acalmasse, deixando a luz acesa ao sair. 

– Vela, Feijão, Voto, Faca, Velha... – leu em voz alta Tia Judite, balançando a cabeça negativamente, no dia seguinte. Encarou-me em silêncio por alguns instantes, e então, eu percebi porque os olhos do mendigo me incomodaram tanto. O olhar era o mesmo da minha professora, olhos que jamais sorriam. 

– Vou te dar outras palavras para casa e amanhã repetimos, tudo bem? – perguntou de forma carinhosa, eu anuí com a cabeça. 

Refizemos o exercício por dias, eu treinava cada conjunto de palavras com cada vez maior afinco, aprender aquele ditado havia se tornado uma obsessão, mas eu sempre assistia meu esforço ir por água abaixo, quando confundia os malditos “F” e “V”. Com o tempo, meus pais começavam a se preocupar comigo, eu chorava por qualquer coisa, e acordava sobressaltado à noite. Contudo, jamais revelei o motivo de minha crescente perturbação. 

Até que um dia, ao final da aula, quando eu já havia perdido minhas esperanças – eu devia ter algum problema mesmo – Tia Judite esperou que todos fossem embora e realizou outro ditado comigo. Talvez fosse o último. Embora desinteressado, respondi o teste obedientemente. Entreguei a folha para a professora, que leu as palavras em silêncio, movimentando os lábios mudos. Ao terminar, pousou o papel sobre a mesa, sorriu discretamente e volveu o olhar cheio de lágrimas para mim. 

– Você conseguiu, meu filho, você conseguiu! – disse me abraçando e eu não pude respondê-la. Apenas chorei, por longos minutos, com a cabeça apoiada em seu colo macio. 

Naquele momento todo o peso do mundo saía de minhas costas. Quando perguntei à minha mãe sobre o mendigo, pouco me importava se ele era sujo ou maltrapilho, eu queria mesmo era saber por que ele era tão triste. A tristeza estava lá, eu vi, estava nos olhos do mendigo, estava o tempo todo nos olhos da minha professora. O olhar é a vitrine da alma, e exibe em que está repleto o coração. A minha angústia, afinal, era a possibilidade de me tornar infeliz como ele. E se o destino dos que não estudam era ser tão triste quanto aquele mendigo, eu precisava aprender logo o ditado, eu não queria ser daquele jeito. Ninguém quer. Nem eu, ou o mendigo. Nem Tia Judite. 

George dos Santos Pacheco

*Publicado originalmente na Revista Êxito Rio.

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