Por Lauro de Matos Nunes Filho
Resenhar um livro como a A filosofia sub specie
grammaticae: Curso sobre Wittgenstein (2016) de Luiz Alberto Hebeche1 não é
uma tarefa simples, pois a leitura desse livro exige uma atenção muito grande
quanto ao que pertence a Hebeche e o que pertence a Ludwig Wittgenstein. Esta
obra busca fazer parte de um seleto número de livros que contemplam a filosofia
de Wittgenstein não apenas de maneira ampla, minuciosa e crítica, mas que
buscam ultrapassá-la sobre certos aspectos. Esta obra, como diz o próprio
Hebeche, busca oferecer um curso completo acerca da filosofia de Wittgenstein,
completando-a em uma nova direção denominada “filosofia sub specie
grammaticae”, concebida como um projeto de desantropologização da
gramática. Neste ínterim, a discussão se pautará na crítica ao uso de contextos
na explicação da noção de significado como uso.
O que veremos ao longo deste
curso, portanto, é um desdobramento de temas que são bastante comuns ao cenário
wittgensteiniano: significado como uso, nomes próprios, seguir regras,
semelhanças de família, etc. No entanto, consideramos o tratamento desses temas
como um ensarilhar as armas para o principal que é a passagem da filosofia sub
specie humanitatis para a filosofia sub specie grammaticae, isto é,
procederemos à eliminação completa da noção de contexto, o que nos levará a uma
desantropologização da gramática e, só assim, afastaremos os últimos resquícios
de metafísica. Corrigiremos, então, erros que ainda se encontram na obra de
Wittgenstein e que, por isso mesmo, se estenderam para todos os seus discípulos
e comentadores. (2016, p. 17)
Já antecipo que o livro, de fato, cumpre seus intentos:
oferecer um curso geral e detido da filosofia de Wittgenstein, centrando-se
principalmente nas IF, para extrair daí novas e não observadas consequências da
filosofia wittgensteiniana.
O livro, se desconsideradas a introdução e as considerações
finais, está dividido em dez capítulos e vinte e duas subseções que buscam dar
um aporte geral da filosofia de Wittgenstein, encerrados por um último e longo
capítulo chamado “A filosofia sub specie grammaticae” que dá título ao
livro.
A escrita de Hebeche é agradável e, por diversas vezes,
atinge um tom literário que deixa a leitura mais fluída e suave. O grande
número de exemplos também auxilia na compreensão de passagens mais complexas.
Contudo, a leitura de Hebeche não é ortodoxa e almeja consequências nem um
pouco convencionais.
O que deve ficar claro é que o livro trata da filosofia de
Wittgenstein e não da história da filosofia do autor, assim, já antecipo ao
leitor interessado nos pormenores biográficos de Wittgenstein que este não é o
livro a ser indicado. Porém, essa aparente deficiência possibilita a Hebeche
desenvolver a obra de um ponto de vista mais temático e menos linear do que
estamos acostumados a ver. O livro oferece um curso no qual conceitos-chave da filosofia
de Wittgenstein são contemplados com atenção e debatidos com comentadores
consagrados.
O primeiro capítulo (e o mais curto), “A concepção
agostiniana da linguagem”, trata essencialmente do §1 das PU e seus
desdobramentos. Nele não há nada muito novo na leitura do consagrado §1, porém,
é uma análise direta e detida do problema motivador das PU e que perpassa toda
a obra. Em especial, a análise do caráter ostensivo da linguagem é confrontada
por meio de uma crítica da dicotomia ensinaraprender fundada no esquema
agostiniano da linguagem.
O segundo e terceiro capítulos, “Significado é uso” e
“Jogos de linguagem”, tratam de conceitos consagrados e apresentam a leitura
paralela de autores como Heidegger. Segundo Hebeche, podemos correlacionar
facilmente o conceito de manualidade (Zuhandlichkeit) em Heidegger com a
crítica de Wittgenstein à descaracterização da palavra como uso, pois quando
teorizamos a palavra nós a retiramos de seu âmbito de doação de sentido,
convertendo-a em puro objeto dado (Vorhanden). Hebeche também confronta a
leitura de intérpretes consagrados da obra wittgensteiniana, como Baker e
Hacker. Segundo Hebeche, tanto Baker quanto Hacker estão certos quanto à
exclusão correta da consciência dentro da filosofia de Wittgenstein, porém erram
ao preservar noções tais como a de contexto, o que contrariaria a proposta do
segundo Wittgenstein de não recorrer a usos ostensivos da linguagem para
definir o que seria o significado das palavras.
O quarto capítulo, “Nomes próprios”, surge como um minicurso
do TLP, nele são debatidos conceitos-chave do Tractatus e as implicações
deste. Neste capítulo é apresentada uma análise pormenorizada do conceito de
“nome simples”, em especial, em Russell, Frege e no TLP. A motivação principal
de Hebeche é problematizar a passagem do TLP para as IF e o “abandono da
análise lógica da linguagem”.
O quinto capítulo, “Imanência do significado”, é um
capítulo relativamente longo que debate o conceito de intencionalidade, onde
são confrontadas as definições de intencionalidade fenomenológica e gramatical.
Hebeche opera um resgate, ou melhor, sequestro de diversos conceitos
fenomenológicos, em especial o de doação no contexto da noção de uso como
significado. Apesar de não ser convencional a apropriação demonstra-se original
e bem desenvolvida, negando a ideia de uma consciência transcendental como
apresentada em Husserl, mas defendendo uma análise que se projete sobre o
significado enquanto dado no momento do uso, realizando um paralelo com a noção
fenomenológica de “voltar às coisas mesmas”, mas sem recorrer a conceitos como
o de consciência transcendental, por exemplo.
O sexto capítulo, “Seguir regras”, é uma análise criteriosa
da noção de seguir regras desenvolvida entre os §§ 185 e 189 das PU. A
dificuldade está numa subseção que compara os conceitos de máquina e maquinação
em Wittgenstein e Heidegger, mas nada intransponível. O que fica claro neste
capítulo é a constante referência a filosofia de Heidegger, para Hebeche a
crítica heideggeriana e wittgensteiniana possuem um mesmo alvo, mas
pressupostos distintos. Para um “o sentido é uma doação do ser”, para o outro
“ele é uma doação da gramática”.
O sétimo capítulo, “Semelhanças de família”, pode ser
concebido em duas partes. A primeira poderia ter sido inserida muito antes na
ordem dos capítulos, pois sua importância para a compreensão das IF é
essencial, porém Hebeche realiza uma série de estudos que confrontam diferentes
análises sobre o referido conceito. Aqui Hebeche debate com intérpretes
consagrados como Khatchadourian, Bambrough e Pitcher, dedicando subseções
específicas para cada um deles. Para Hebeche cada um dos autores acima analisa
como a noção de semelhança de família soluciona (dissolve) parcialmente
diferentes problemas, tais como o problema da generalidade dos nomes, do
realismo de universais e do essencialismo da linguagem. Hebeche apresentará
críticas parciais a cada um desses autores, pois, segundo ele, todos pressupõem
noções que deveriam ser abandonadas se seguirmos a filosofia das PU. O ponto principal
de sua crítica se dirige a Pitcher que teria sido incapaz de identificar os
resíduos antropológicos na filosofia de Wittgenstein. A partir deste ponto
Hebeche fixa o quadro geral de sua crítica contra um possível antropologismo na
filosofia de Wittgenstein.
O oitavo capítulo “A filosofia sub specie aeternitatis”
inicia a problematização que levará até a subseção final sobre a
desantropologização da gramática. Por sub specie aeternitatis Hebeche
compreende a ideia de uma filosofia cristalizada, crente em formas essenciais,
metafísicas, epistemológicas ou lógicas, sendo esta última a forma essencial
que caracteriza o TLP.
O nono capítulo, “A filosofia sub specie humanitatis”,
trata da passagem de uma postura cristalizada no TLP para uma visão mais “ordinária”
da linguagem nas IF. A ideia da humanitatis é que a linguagem preserva
uma “vagueza” e “indeterminação” inerentes e não podem ser reduzidas à lógica.
Até este ponto, segundo Hebeche, toda discussão conceitual estava restrita à
filosofia de Wittgenstein, porém, seguindo desenvolvimentos não previstos por
Wittgenstein, Hebeche dará início a uma crítica. Esta crítica é direcionada a
diferentes perspectivas antropologizantes que ainda estariam presente nas IF e
que contrariariam uma plena crítica da linguagem. Neste sentido, o próprio
Wittgenstein estaria imerso em ilusões gramaticais.
O décimo e mais longo capítulo, “A filosofia sub specie
grammaticae”, desponta como o ponto de originalidade da obra, pois procura
criticar a estreiteza de certas definições das IF, além de debater temas
transversos como a negatividade e o essencialismo da linguagem. Hebeche também
prossegue no debate com intérpretes consagrados como Le Roy Finch e Baker.
Neste ponto, apesar de ser uma questão secundária, a organização do livro
presta um grande desserviço à obra de Hebeche, pois aquilo que dá título ao
livro a “filosofia sub specie grammaticae” e justifica sua originalidade
é desenvolvido apenas na última seção do último capítulo intitulada “A
desantropologização da Gramática”. O leitor interessado apenas na tese de
Hebeche e já conhecedor do texto wittgensteiniano poderá, sem muitos prejuízos,
pular diretamente para esta seção. Nesta subseção final Hebeche justifica sua
opção por uma filosofia sub specie grammaticae, onde argumenta que Wittgenstein
conserva nas IF uma filosofia da linguagem antropologizada, que submete os
jogos de linguagem à dimensão do humano como um último contexto. Hebeche
defenderá que não se trata de se desumanizar a gramática, mas de evitar que essa
se submeta ao humano, algo que levaria a um retorno a formas essencialistas da
linguagem como na filosofia sub specie aeternitatis.
A desgramatização é, desse
modo, uma imposição conceitual. Uma dessas formas de imposição é o
antropologismo. A gramática, no entanto, não se doa ao homem, pois, ao
contrário, os diversos significados de “homem” são doações da gramática. Com
isso a pergunta “O que é o homem?” está inserida nas execuções da gramática. O
sentido do homem está inserido no destino da gramática. (2016, p. 326)
No entanto, esta última seção, que culminaria e
justificaria o título da obra, acaba dando origem a uma sensação de anticlímax,
pois a seção é muito curta e deixa a impressão de que mais coisas poderiam ser
ditas a respeito, principalmente acerca das implicações positivas da leitura de
Hebeche ou de quais seriam as justificativas para que Wittgenstein deixasse que
traços antropologizantes sobrevivessem a sua obra. Somado a isso, o leitor
sentirá falta de maiores exames do conceito de forma de vida (Lebensform),
um conceito chave para Wittgenstein e que certamente deveria ser debatido
detidamente em meio a uma crítica ao agora denominado “antropologismo
wittgensteiniano”.
Ao final é possível elencar alguns aspectos negativos
gerais. Um primeiro aspecto é a aparente ideia de que o livro seria um curso
geral sobre a filosofia de Wittgenstein. Apesar de mencionar e se pautar na
extensão completa das obras de Wittgenstein, o núcleo da análise de Hebeche são
as IF. Apesar de realizar uma boa apresentação do TLP, deve-se dizer que se o
leitor busca uma análise pormenorizada e detida desta obra e outras que não as
IF então este deve recorrer a fontes bibliográficas adicionais. Até mesmo
porque as menções a outras obras de Wittgenstein estão permeadas de críticas a
certas tendências interpretativas, tais como aquelas que reduzem o Tractatus a
uma obra de lógica ou de ética. Por isso, o livro de Hebeche não oferece a
isenção e a fidelidade exigidas por livros de apresentação ou exegese,
consistindo em um debate mais profundo e pormenorizado do pensamento
wittgensteiniano.
Além disso, a tese final, sobre um antropologismo
wittgensteiniano carece de maiores desenvolvimentos e de um posicionamento mais
claro acerca dos motivos que levaram Wittgenstein a deixar perpassar tal
antropologismo. Em especial, com uma maior confrontação textual com
Wittgenstein.
O livro de Hebeche oferece um curso conciso acerca da
filosofia de Wittgenstein, porém, ele pode ser visto antes como uma análise da
obra wittgensteiniana do que um manual para a compreensão do autor. Certamente
que diversos capítulos podem ser utilizados para esclarecer conceitos e
definições, porém os mais complexos conservam uma unidade própria e não serão
de fácil leitura para wittgensteinianos de primeira viagem. Contudo, o leitor
se beneficiará com a acidez e pontualidade de certas críticas, cuja validade
lhe caberá avaliar.
Por fim, a tese de Hebeche, de que há um antropologismo
latente nas IF, é bem fundamentada e representa um desafio a ser enfrentado por
aqueles interessados na obra wittgensteiniana, o seu caráter sui generis impede
o seu negligenciamento. Assim, positiva ou negativamente, a tese da
“desantropologização da gramática” representa um novo e complexo exercício para
os wittgensteinianos.
HEBECHE, LUIZ A. A FILOSOFIA SUB SPECIE GRAMMATICAE: CURSO SOBRE WITTGENSTEIN. FLORIANÓPOLIS: EDITORA DA UFSC, 2016.ISBN: 978-85-32-80769-4. 334 P.
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