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26 de maio de 2020

Resenha do livro A Filosofia sub specie grammaticae: Curso sobre Wittgenstein, de Luiz Hebeche, por Lauro de Matos Nunes Filho


Por Lauro de Matos Nunes Filho 

Resenhar um livro como a A filosofia sub specie grammaticae: Curso sobre Wittgenstein (2016) de Luiz Alberto Hebeche1 não é uma tarefa simples, pois a leitura desse livro exige uma atenção muito grande quanto ao que pertence a Hebeche e o que pertence a Ludwig Wittgenstein. Esta obra busca fazer parte de um seleto número de livros que contemplam a filosofia de Wittgenstein não apenas de maneira ampla, minuciosa e crítica, mas que buscam ultrapassá-la sobre certos aspectos. Esta obra, como diz o próprio Hebeche, busca oferecer um curso completo acerca da filosofia de Wittgenstein, completando-a em uma nova direção denominada “filosofia sub specie grammaticae”, concebida como um projeto de desantropologização da gramática. Neste ínterim, a discussão se pautará na crítica ao uso de contextos na explicação da noção de significado como uso.

O que veremos ao longo deste curso, portanto, é um desdobramento de temas que são bastante comuns ao cenário wittgensteiniano: significado como uso, nomes próprios, seguir regras, semelhanças de família, etc. No entanto, consideramos o tratamento desses temas como um ensarilhar as armas para o principal que é a passagem da filosofia sub specie humanitatis para a filosofia sub specie grammaticae, isto é, procederemos à eliminação completa da noção de contexto, o que nos levará a uma desantropologização da gramática e, só assim, afastaremos os últimos resquícios de metafísica. Corrigiremos, então, erros que ainda se encontram na obra de Wittgenstein e que, por isso mesmo, se estenderam para todos os seus discípulos e comentadores. (2016, p. 17)

Já antecipo que o livro, de fato, cumpre seus intentos: oferecer um curso geral e detido da filosofia de Wittgenstein, centrando-se principalmente nas IF, para extrair daí novas e não observadas consequências da filosofia wittgensteiniana.
O livro, se desconsideradas a introdução e as considerações finais, está dividido em dez capítulos e vinte e duas subseções que buscam dar um aporte geral da filosofia de Wittgenstein, encerrados por um último e longo capítulo chamado “A filosofia sub specie grammaticae” que dá título ao livro.
A escrita de Hebeche é agradável e, por diversas vezes, atinge um tom literário que deixa a leitura mais fluída e suave. O grande número de exemplos também auxilia na compreensão de passagens mais complexas. Contudo, a leitura de Hebeche não é ortodoxa e almeja consequências nem um pouco convencionais.
O que deve ficar claro é que o livro trata da filosofia de Wittgenstein e não da história da filosofia do autor, assim, já antecipo ao leitor interessado nos pormenores biográficos de Wittgenstein que este não é o livro a ser indicado. Porém, essa aparente deficiência possibilita a Hebeche desenvolver a obra de um ponto de vista mais temático e menos linear do que estamos acostumados a ver. O livro oferece um curso no qual conceitos-chave da filosofia de Wittgenstein são contemplados com atenção e debatidos com comentadores consagrados.
O primeiro capítulo (e o mais curto), “A concepção agostiniana da linguagem”, trata essencialmente do §1 das PU e seus desdobramentos. Nele não há nada muito novo na leitura do consagrado §1, porém, é uma análise direta e detida do problema motivador das PU e que perpassa toda a obra. Em especial, a análise do caráter ostensivo da linguagem é confrontada por meio de uma crítica da dicotomia ensinaraprender fundada no esquema agostiniano da linguagem.
O segundo e terceiro capítulos, “Significado é uso” e “Jogos de linguagem”, tratam de conceitos consagrados e apresentam a leitura paralela de autores como Heidegger. Segundo Hebeche, podemos correlacionar facilmente o conceito de manualidade (Zuhandlichkeit) em Heidegger com a crítica de Wittgenstein à descaracterização da palavra como uso, pois quando teorizamos a palavra nós a retiramos de seu âmbito de doação de sentido, convertendo-a em puro objeto dado (Vorhanden). Hebeche também confronta a leitura de intérpretes consagrados da obra wittgensteiniana, como Baker e Hacker. Segundo Hebeche, tanto Baker quanto Hacker estão certos quanto à exclusão correta da consciência dentro da filosofia de Wittgenstein, porém erram ao preservar noções tais como a de contexto, o que contrariaria a proposta do segundo Wittgenstein de não recorrer a usos ostensivos da linguagem para definir o que seria o significado das palavras.
O quarto capítulo, “Nomes próprios”, surge como um minicurso do TLP, nele são debatidos conceitos-chave do Tractatus e as implicações deste. Neste capítulo é apresentada uma análise pormenorizada do conceito de “nome simples”, em especial, em Russell, Frege e no TLP. A motivação principal de Hebeche é problematizar a passagem do TLP para as IF e o “abandono da análise lógica da linguagem”.
O quinto capítulo, “Imanência do significado”, é um capítulo relativamente longo que debate o conceito de intencionalidade, onde são confrontadas as definições de intencionalidade fenomenológica e gramatical. Hebeche opera um resgate, ou melhor, sequestro de diversos conceitos fenomenológicos, em especial o de doação no contexto da noção de uso como significado. Apesar de não ser convencional a apropriação demonstra-se original e bem desenvolvida, negando a ideia de uma consciência transcendental como apresentada em Husserl, mas defendendo uma análise que se projete sobre o significado enquanto dado no momento do uso, realizando um paralelo com a noção fenomenológica de “voltar às coisas mesmas”, mas sem recorrer a conceitos como o de consciência transcendental, por exemplo.
O sexto capítulo, “Seguir regras”, é uma análise criteriosa da noção de seguir regras desenvolvida entre os §§ 185 e 189 das PU. A dificuldade está numa subseção que compara os conceitos de máquina e maquinação em Wittgenstein e Heidegger, mas nada intransponível. O que fica claro neste capítulo é a constante referência a filosofia de Heidegger, para Hebeche a crítica heideggeriana e wittgensteiniana possuem um mesmo alvo, mas pressupostos distintos. Para um “o sentido é uma doação do ser”, para o outro “ele é uma doação da gramática”.
O sétimo capítulo, “Semelhanças de família”, pode ser concebido em duas partes. A primeira poderia ter sido inserida muito antes na ordem dos capítulos, pois sua importância para a compreensão das IF é essencial, porém Hebeche realiza uma série de estudos que confrontam diferentes análises sobre o referido conceito. Aqui Hebeche debate com intérpretes consagrados como Khatchadourian, Bambrough e Pitcher, dedicando subseções específicas para cada um deles. Para Hebeche cada um dos autores acima analisa como a noção de semelhança de família soluciona (dissolve) parcialmente diferentes problemas, tais como o problema da generalidade dos nomes, do realismo de universais e do essencialismo da linguagem. Hebeche apresentará críticas parciais a cada um desses autores, pois, segundo ele, todos pressupõem noções que deveriam ser abandonadas se seguirmos a filosofia das PU. O ponto principal de sua crítica se dirige a Pitcher que teria sido incapaz de identificar os resíduos antropológicos na filosofia de Wittgenstein. A partir deste ponto Hebeche fixa o quadro geral de sua crítica contra um possível antropologismo na filosofia de Wittgenstein.
O oitavo capítulo “A filosofia sub specie aeternitatis” inicia a problematização que levará até a subseção final sobre a desantropologização da gramática. Por sub specie aeternitatis Hebeche compreende a ideia de uma filosofia cristalizada, crente em formas essenciais, metafísicas, epistemológicas ou lógicas, sendo esta última a forma essencial que caracteriza o TLP.
O nono capítulo, “A filosofia sub specie humanitatis”, trata da passagem de uma postura cristalizada no TLP para uma visão mais “ordinária” da linguagem nas IF. A ideia da humanitatis é que a linguagem preserva uma “vagueza” e “indeterminação” inerentes e não podem ser reduzidas à lógica. Até este ponto, segundo Hebeche, toda discussão conceitual estava restrita à filosofia de Wittgenstein, porém, seguindo desenvolvimentos não previstos por Wittgenstein, Hebeche dará início a uma crítica. Esta crítica é direcionada a diferentes perspectivas antropologizantes que ainda estariam presente nas IF e que contrariariam uma plena crítica da linguagem. Neste sentido, o próprio Wittgenstein estaria imerso em ilusões gramaticais.
O décimo e mais longo capítulo, “A filosofia sub specie grammaticae”, desponta como o ponto de originalidade da obra, pois procura criticar a estreiteza de certas definições das IF, além de debater temas transversos como a negatividade e o essencialismo da linguagem. Hebeche também prossegue no debate com intérpretes consagrados como Le Roy Finch e Baker. Neste ponto, apesar de ser uma questão secundária, a organização do livro presta um grande desserviço à obra de Hebeche, pois aquilo que dá título ao livro a “filosofia sub specie grammaticae” e justifica sua originalidade é desenvolvido apenas na última seção do último capítulo intitulada “A desantropologização da Gramática”. O leitor interessado apenas na tese de Hebeche e já conhecedor do texto wittgensteiniano poderá, sem muitos prejuízos, pular diretamente para esta seção. Nesta subseção final Hebeche justifica sua opção por uma filosofia sub specie grammaticae, onde argumenta que Wittgenstein conserva nas IF uma filosofia da linguagem antropologizada, que submete os jogos de linguagem à dimensão do humano como um último contexto. Hebeche defenderá que não se trata de se desumanizar a gramática, mas de evitar que essa se submeta ao humano, algo que levaria a um retorno a formas essencialistas da linguagem como na filosofia sub specie aeternitatis.

A desgramatização é, desse modo, uma imposição conceitual. Uma dessas formas de imposição é o antropologismo. A gramática, no entanto, não se doa ao homem, pois, ao contrário, os diversos significados de “homem” são doações da gramática. Com isso a pergunta “O que é o homem?” está inserida nas execuções da gramática. O sentido do homem está inserido no destino da gramática. (2016, p. 326)

No entanto, esta última seção, que culminaria e justificaria o título da obra, acaba dando origem a uma sensação de anticlímax, pois a seção é muito curta e deixa a impressão de que mais coisas poderiam ser ditas a respeito, principalmente acerca das implicações positivas da leitura de Hebeche ou de quais seriam as justificativas para que Wittgenstein deixasse que traços antropologizantes sobrevivessem a sua obra. Somado a isso, o leitor sentirá falta de maiores exames do conceito de forma de vida (Lebensform), um conceito chave para Wittgenstein e que certamente deveria ser debatido detidamente em meio a uma crítica ao agora denominado “antropologismo wittgensteiniano”.
Ao final é possível elencar alguns aspectos negativos gerais. Um primeiro aspecto é a aparente ideia de que o livro seria um curso geral sobre a filosofia de Wittgenstein. Apesar de mencionar e se pautar na extensão completa das obras de Wittgenstein, o núcleo da análise de Hebeche são as IF. Apesar de realizar uma boa apresentação do TLP, deve-se dizer que se o leitor busca uma análise pormenorizada e detida desta obra e outras que não as IF então este deve recorrer a fontes bibliográficas adicionais. Até mesmo porque as menções a outras obras de Wittgenstein estão permeadas de críticas a certas tendências interpretativas, tais como aquelas que reduzem o Tractatus a uma obra de lógica ou de ética. Por isso, o livro de Hebeche não oferece a isenção e a fidelidade exigidas por livros de apresentação ou exegese, consistindo em um debate mais profundo e pormenorizado do pensamento wittgensteiniano.
Além disso, a tese final, sobre um antropologismo wittgensteiniano carece de maiores desenvolvimentos e de um posicionamento mais claro acerca dos motivos que levaram Wittgenstein a deixar perpassar tal antropologismo. Em especial, com uma maior confrontação textual com Wittgenstein.
O livro de Hebeche oferece um curso conciso acerca da filosofia de Wittgenstein, porém, ele pode ser visto antes como uma análise da obra wittgensteiniana do que um manual para a compreensão do autor. Certamente que diversos capítulos podem ser utilizados para esclarecer conceitos e definições, porém os mais complexos conservam uma unidade própria e não serão de fácil leitura para wittgensteinianos de primeira viagem. Contudo, o leitor se beneficiará com a acidez e pontualidade de certas críticas, cuja validade lhe caberá avaliar.
Por fim, a tese de Hebeche, de que há um antropologismo latente nas IF, é bem fundamentada e representa um desafio a ser enfrentado por aqueles interessados na obra wittgensteiniana, o seu caráter sui generis impede o seu negligenciamento. Assim, positiva ou negativamente, a tese da “desantropologização da gramática” representa um novo e complexo exercício para os wittgensteinianos.

HEBECHE, LUIZ A. A FILOSOFIA SUB SPECIE GRAMMATICAE: CURSO SOBRE WITTGENSTEIN. FLORIANÓPOLIS: EDITORA DA UFSC, 2016.ISBN: 978-85-32-80769-4. 334 P.
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