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5 de agosto de 2014

Folha Carioca: Sem cheiro

Josué já não acordou com o cheiro de alho frito. Dona Feliciana começava a lavar feijão cedo. Comida tem o tempo dela pra pegar no tempero. Esses truques de quinze minutos nem pra sanduiche de mortadela. Toda sexta podia. Josué era vizinho de porta de Dona Feliciana faz mais de ano. O feijão ela fazia com adianto e quantidade. Deixava uns potinhos pro moço, depois que avistou sua geladeira. Homem solteiro é carma na sua vida. Em todo andar que morou, tinha um solitário para lhe dar bom dia. Quando fazia feira também trazia alguma coisa pra ele. Mas hoje o cheiro de alho frito não veio.
 

O de couve puxando na cebola muito menos. Quiçá o pão de ló que estalava do forno de três décadas da vizinha. Logo ele que contava tintin por tintin de sua vida pelos cheiros. Mar era infância nunca adormecida. Bem diferente da secretária do setor que fedia a maresia. Esquecia de comprar açúcar, mas o sabonete com cheiro de madeira não podia faltar. Coisa de vó que conservou o frescor e a beleza até o último adeus.

Apostava na bolsa há anos e sempre na hora da dúvida, usava o faro. Sem contar na alma. Mantinha no bolso da calça caderno com anotações das mulheres inesquecíveis pelo cheiro. Nome? Depois. Primeiro o que as vestia no pulso, na nuca, no vento. De onde tirou esse jeito não sabia. Mas o que faria sem o faro? Era como andar descalço, vendado. Nunca tentou conhecer o mundo pelos olhos, gosto, tato, voz.

Sem nada entender, desceu para começar o dia. Passou na padaria e não sentiu cheiro de pão fresco que começava na esquina. Seu Nésio, mendigo das antigas do quarteirão, que ele costumava evitar pela insuportável murrinha, não lhe atrapalhava mais. Olhou com bons olhos, olhos novos e até pagou um sanduiche de queijo. Ao entrar na sala de reunião, notou o traje de Estela, a até então temida maresia na pele de secretária. Estela sempre usara vestidos muito interessantes, mas o faro nunca o deixara notar o jardim.

Pra não dizer que não falei de flores, o perfume de rosas de Eduarda já não mais o movia. Eduarda não dava bolero, mas deixou Josué a ver navios durante bons cinco anos. Afogou as mágoas em outras fragrâncias, mas o olfato não o deixava escapar da jovem senhora do perfume de flores a quem os floreios no máximo lhe deram reconhecimento de gentileza. Não mais se perderia nas rosas. A desmedida obsessão abriu espaço para finalmente notar os coqueiros que sempre enfeitaram sua alameda.

Um vazio no peito. Uma falta de jeito conhecido.

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